sexta-feira, 17 de junho de 2022

as "sepulturas antropomórficas"

a ciência é feita de provas, de números, de comparações. mas terá que haver um lugar para a intuição, que permita elaborar teorias e pô-las à prova. a ciência não pode ser feita de aparências tidas por realidades, por mais "óbvia" que a aparência se apresente. vem isto a propósito das impropriamente chamadas "sepulturas antropomórficas", que de sepulturas apenas têm uma aparência, ainda por cima pouco óbvia. o tema tem sido alvo de extensíssima literatura e investigação, quase sempre, senão sempre, voltadas para a sua vocação necropólica. mas será assim? de facto, se de sepulturas se tratasse, eram sepulturas de tamanho pequeno, abaixo da média das estaturas adultas, mais próximas do tamanho de crianças crescidas, digamos, de 8 a 12 anos de idade. por outro lado, nenhuma dessas "sepulturas" tem profundidade que chegue para acolher por inteiro um cadáver, deixando de fora o peito e a barriga, quando não parte da cabeça. ainda por outro lado, em algums locais, são tantas que certamente excedem o número de famílias e pessoas do lugar (indicando talvez uma dimensão "diocesana"), enquanto que noutros lados são claramente poucas para a população existente (mais próprias de uma dimensão "paroquial"). para concluir o puzzle, as "sepulturas antropomórficas" não têm (ou talvez raramente tenham tido, temporariamente), cobertura, de terra, de barro, de madeira ou de pedra, pelo que os cadáveres ficariam expostos à chuva, ao vento, à trovoada, aos bichos predadores e à predação dos homens. essas "sepulturas antropomórficas" deixam de lado os adultos, sendo certo que a imensa maioria delas não permite lá deitar quem tenha mais que 1,20 m, no máximo 1,50 m. eu tenho seguido em especial dois lugares de "sepulturas antropomórficas": São Pedro de Lourosa e Penela, sabendo que também existem junto à Sé Velha de Coimbra. sei que há muitas outras, da Galiza e do Entre-Douro-e-Minho às Beiras, e, curiosamente, quase todas têm ao lado uma velhíssima igreja ou vestígios de cultos ancestrais. e, mais curioso ainda, muitas dessas igrejas têm por orago São Pedro - o que, de imediato, chama mais a atenção para a pedra ou penedo ("tu és Pedro e sobre essa pedra fundarei a minha igreja") do que para um local de inumação. ainda mais estranho, não há por perto cemitério algum, que ateste a vocação do lugar para intervenções fúnebres. no caso de São Pedro de Lourosa, há uma grande laje com dezenas dessas ditas "sepulturas", sobre parte das quais se ergue a velhíssima igreja suevo-moçarábico-românica. no caso de Penela, o orago é São Miguel, a igreja adjacente está referenciada pelo menos desde a época românica (séc. XI). o orago aponta para um culto mais orientado para coisas etéreas ou celestiais do que para temáticas fúnebres. além disso, e muito mais significativo, as ditas "sepulturas" estão colocadas num penedo bastante abrupto, com algumas dessas cavas desprotegidas, "abertas" de um dos lados, o que torna o enterramento verdadeiramente impossível, permitindo apenas a colocação da criança viva por algum tempo. tudo isto me leva a concluir que tais lugares, longe de serem locais de sepultura são locais de cerimónias de iniciação ou de passagem, da idade infantil para a idade adulta, durante as quais é necessário "morrer" para "renascer" (ao "terceiro dia"?) sob outra qualidade. daí a continuidade da santidade do lugar com a respetiva igreja. ainda, e finalmente, é estranho que um método de "inumação" como este só tenha lugar em certos locais e não noutros da mesma área geográfica, sociológica e cultural. a propósito, resta-me exprimir o meu completo ceticismo relativamente à atribuição maioritária destes monumentos à Idade Média. não parece coisa desse tempo. o que é seguramente desse tempo, numa exensão que vai do período suevo e visigótico (século V) até ao período borgonhês (século XI), é a sua cristianização total ou parcial, com a construção da respetiva igreja anexa e a constituição da paróquia ou da diocese. e, claro, as suas primeiras referências escritas.

Nenhum comentário: