sábado, 2 de agosto de 2008

as pontes que nos unem

a ponte estabelece uma ligação entre dois mundos. no plano material, liga duas margens de um rio, de um vale profundo ou de um braço de mar, permitindo ou facilitando a comunicação entre povos e realidades até então separados. no plano simbólico, que noutras eras acompanhava e revestia o mero plano material, esta ligação adquiria propriedades re-ligiosas: o construtor de pontes ligava terra com terra, terra com céu, matéria com espírito. a sua função era assimilada à de um sacerdote, a que os romanos chamavam pontifex, "pontífice", "fazedor ou construtor, de pontes". ele formava o elo de ligação entre a vida de Aquém e de Além. os pontífices romanos constituíam-se em colégio ou ordem sacerdotal, com funções religiosas e jurídicas (direito divino), segundo a máxima, transposta para o cristianismo, "o que ligares na terra será ligado nos céus". ao colégio dos pontífices, ou "colégio pontifício", presidia o "sumo pontífice" ou pontifex maximus, eleito vitaliciamente pelos seus pares. após uma profunda crise religiosa e vagando o lugar de sumo pontífice, César assume a função e incorpora-a no exercício do poder imperial. com a queda do Império, a designação e a função são assumidas pelo Papado de Roma.
na Idade Média, a "congregação dos irmãos pontífices" do século XII, sob a regra beneditina, encarrega-se da construção de pontes e calçadas. certas lendas, como a de São Gonçalo de Amarante, atribuem ao mestre construtor a função de estabelecer "pontes" também a outros níveis, como a função de "casamenteiro das velhas" (ou seja, das "antigas mulheres"), talvez, dada a configuração do culto, pela adição de funções religiosas pagãs anteriores relativas ao chamado "culto da fertilidade". mas a verdade é que a própria ponte em si se pode relacionar com esse "culto da fertilidade", pois casos há em que nelas se realizam rituais destinados a favorecer a gravidez e o seu bom termo.
certas pontes, pela especial sensação de dificuldade que a sua arquitetura inspira, são conhecidas por "ponte do diabo", pois só o diabo, ou alguém que lhe conheça as artes, seria capaz de as construir. são assim conhecidas, entre outras, a Ponte da Mizarela (Pt), a Ponte de Martorell (Cat.), as ruinas da Ponte de Liédana (Na.) e as Pontes de Olvena (Arag.). as "pontes do diabo", com a respetiva lenda, existem também em França e na Itália.
às vezes, a palavra "ponte" é substituída por "arco", "arcos" ou "arquinho", que reportam à arquitetura da construção.

os topónimos que se seguem relacionam-se com pontes que estiveram na origem do desenvolvimento do respetivo povoado, vila ou cidade:

Alcântara

Alcantarilha - na realidade, "alcantarilha" é uma espécie de "ponte ao contrário", ou seja, uma "construção destinada a permitir que um pequeno canal cruze uma estrada por baixo".

Aldeia da Ponte

Arcos de Valdevez - está por "Arcos de Vale de Vez", sendo "Vez" o rio transposto pela ponte

Brugg (CH)
Cambridge (GB) - "ponte sobre o rio Cam", ou "Ponte de Cam"
Innsbruck (A.) - "ponte sobre o rio Inn", ou "Ponte de Inn"
Most (Cs.)
Mostar (BiH)
Ponferrada (Le.)
Ponteceso (Gz.)
Ponte Barxas (Gz.) - "barxas" por "várzeas"?

Ponte Cesures (Gz.) - há dúvidas sobre "Cesures" ou "Sezures". as duas grafias surgem tamém em Portugal

Ponte da Barca - como "barca" já significava "passagem", "ponte da barca" é uma redundância

Ponte da Mucela
Ponte da Pedra
Ponte das Três Entradas - pela sua forma em "Y"
Ponte de Lima
Ponte de Sor
Ponte d' Eume (Gz.)

Ponte do Arquinho - uma espécie de pleonasmo, já que "arquinho" é a própria ponte

Ponte do Bico
Ponte dos Arcos (Br.) -
Ponte do Sótão - "Sótão" é hidrónimo
Pontela
Pontelha (Pt. e Gz.)
Pontelinha

Ponte Pedrinha (Pt. e Gz.) - topónimo muito frequente, indica construção romana (?). a estas pontes, tal como às "pontes do diabo", associa-se uma lenda segundo a qual teriam sido construídas durante a noite, ficando no final uma "pedrinha" por colocar, para que não pudessem ser dadas por concluídas. umas vezes é o diabo que as constrói pela noite, outras vezes são os mouros. a "pedrinha" em falta é um artifício para ludibriar o diabo, que estabelece um "preço" pela sua colaboração na obra: a morte dentro de um ano para o primeiro que a atravesse depois de pronta. o diabo sai sempre enganado, pois que o primeiro ser vivo que a atravessa é um gato, um cão ou um porco. é possível que estas lendas estejam associadas aos sacrifícios humanos ou de animais que outrora se fazia para propiciar o bom curso de uma construção.

Ponte Vedra (Gz.) - ponte medieval, como indica a forma "vedra", para designar "velha"

Ponte Sezures - ver "Ponte Cesures" (Gz.)
Pontezela - pequena ponte medieval, como indica o diminutivo "cella"
Pontezinha
Pontilhão / Pontilhóm (Pt. e Gz.)
Pontinha (Pt. e Gz.)
Puente la Reina (Na.)
São João da Ponte (Pt. e Br.)


(nota: aqui se retoma e amplia um tópico já publicado)
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nota: sobre o simbolismo da ponte, ver Jaime Cobreros (1991), El Puente, Ediciones Obelisco, Biblioteca de los Símbolos, nº 2, Barcelona. ver tamém Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1982), Dictionnaire des Symboles, Robert Laffont/Jupiter, Paris, pp. 777-778.

7 comentários:

cneirac disse...

Em mapas antigos tenho visto uma ponte sobre o rio Ulha grafado como 'Ponte Secura'. Nom tenho a certeza de se tratar de Ponte-Cesures, pois há outras pontes históricos rio arriba e a localizaçom pode estar errada.

Também nom sei se a filologia pode explicar que 'Secura' remate em 'Sezura' em vez de em 'Segura'.

Mas o mapa aí está.

josé cunha-oliveira disse...

agradeço a achega importante.
pois é, a questão mantém-se. vejo por aqui "Segura", "Cesuros".
não sei como de "Segura" se passa a "Sezura", até porque não tenho dados "seguros" sobre a etimologia da(s) palavra(s).
aqui como aí, há uma série de topónimos começados por Sesi- ou Cesi-, aparentemente relacionados com o antropónimo germânico "Sigis" ou "Sísis".

Lengo D'Noronha disse...

Viajante, amigo.
Deveras interessante esta postagem.
As pontes.As variantes. As ligas.
Não sei quem já disse que nas relações humanas pode-se fazer muros ou...pontes.
Fico com elas.

Grande abraço.

josé cunha-oliveira disse...

sem dúvida, a vida não seria humana sem as "pontes".

Ismael disse...

http://www.cm-idanhanova.pt/freguesias/segura.html

Antiga "ponte segura"?


E, Regueira de Pontes, freguesia do concelho de Leiria.

cneirac disse...

Da leitura do livro 'Toponimia de Galicia' de Fernando Cabeza Quiles, que venho de acabar, extracto algúns dados acerca do topónimo Ponteceso (Ponte-Ceso):

A maior parte dos estudosos concordam em levar o topónimo até 'pontecaessu', ponte cortada ou derruída.

Mas em esta hipótese nom há concordância de género entre 'ponte' e 'caessu', feminino em latim galaico. Nom há por aqui topónimo nenhum formado por Ponte ao que siga um adjectivo masculino, gênero que tinha ponte no latim clássico.

No Tombo de Sobrado há um escrito de 1175 onde lemos:

"...per mediam venam fluminis de decesso et per iuncale de Telia..."

O autor sugire que pode haver uma repetiçao no sintagma 'de decesso' e que deveria ser 'flumini de cesso'.

Ponte-Ceso recibiria assim o seu nome do rio Cesso na sua foz, onde forma um pequeno estuário com amplas zonas de branhas onde penetra ainda hoje a maré.

O Padre Sarmiento aventurou no seu dia que Cesso viria de '(a)ccessus maris' ou 'entrada do mar' (ou à terra poderiamos dizer nós). transcreve o Padre unha expressom popular em castelám ouvida en 1745: 'a la puente del Ceso'.

Este rio era, aliás, navegável durante vários Km, até a altura do bosque de Cesulhas (Cessulhas). Este bosque conseva ainda o seu nome histórico, entanto o rio conhece-se na actualidade como Anllóns (Anlhons, de 'angulones').

Existe uma outra mencom ao topónimo em um mapa de Il Reino di Galicia de Domenico e Giovanni de Rossi (1692-4), justo na localizaçom actual de Ponteceso: 'Cessio R.' ou Río Cesio.

O autor destas notas advirte no livro do carácter experimental destas reflexóns.

Eu, pola minha parte, boto em falta vincular este topónimo Ponte-Ceso ao de Ponte-Cesures (aquele que eu ligava com 'Ponte Secura'), já que se trata de uma outra ponte em uma foz (na do Ulha, navegável desde tempos imemoriais) e em um terreo novamente facilmente coberto polas cheias.

Saúde!

josé cunha-oliveira disse...

muito importante a sua achega!
Ponteceso estava na minha lista para futuro exame.
e vai continuar...