sábado, 15 de outubro de 2005

O culto das "cruzes", encruzilhadas ou cruzamentos

no tempo em que devagar se ia longe, os caminhos da terra confundiam-se com os caminhos da alma. o mundo exterior era uma representação simbólica do mundo interior. viajar era contemplar, de uma só vez, a luz exterior e a luz interior, as sombras de fora e as sombras de dentro, os monstros da terra e os monstros da alma. e a alma em viagem tinha consigo a representação do mundo superior, o mundo do além em movimento, a companhia dos que viveram e partiram primeiro, a gritaria de deuses e demónios, das almas em transe, dos espíritos em paz ou em desgraça. por isso tinha tanta importância uma encruzilhada, um encontro ou um cruzamento.
estavam assinalados, autênticos sinais de trânsito de meditação e demora. umas "alminhas", um "cruzeiro", uma "capela", com velinhas ardendo noite e dia, um montão de pedras que crescia a cada novo passante. Eram os "Cruzes", "Encontros", "Encruzilhadas", "Entroncamentos", na estrada e na vida. levou algum tempo a perceber que as "Cruzes" se referiam ao "Cruze" (cruzamento) e não à "Cruz" que as assinala. mas é "Cruze" , "Cruce", e não "Cruz" o que encontramos no resto da Península.

a população anterior à chegada dos romanos marcava os cruzamentos com montinhos de pedra com que sinalizavam as direcções principais. esses montículos tinham tamém uma função religiosa. os romanos mantiveram essa função, dedicando, pelo menos os mais importantes "cruzes", à invocação de Mercúrio. na época cristã tiveram direito a uma cruz ou a umas "alminhas". isto parece bem representado num cruzamento perto de Coimbra, chamado "Cruz de Morouços". nesse cruzamento há uma capelinha, vestígio desse culto ancestral. e o nome "Morouços" evoca a presença desse "montinho de pedras" que assinalava o "cruze".

Vemos por aí:

Cruz,
Cruz d'Argola,
Cruz da Armada,
Cruz da Légua,
Cruz da Pedra,
Cruz das Almas (Br.) - espécie de tautologia, já que as "almas" assinalam cruzamentos
Cruz da Toita,
Cruz de Celas,
Cruz de Chão do Bispo

Cruz de Morouços - tal como "Cruz das Almas, é uma espécie de tautologia, já que os "marouços", "moroiços" ou "morouços", como acima se disse, eram a forma pagã de reverenciar os cruzamentos ou encruzilhadas, antes das "almas" ou "alminhas"

Cruz do Pau
Cruze (Gz.)
Cruzeiro,
Cruzes
Cruzinha
Encontro
Encruzilhada
Entroncamento
Entroncamento de Poiares
Santiago da Cruz

além destes, assume uma especial importância o topónimo "Coruche", fruto de um circunstancialismo fonético-dialectal específico. a palavra "Cruze", pronunciada C.ruje" (ou "Queruxe"), evoluiu facilmente para "Coruche" - que também constitui um antiquissimo cruzamento de estradas. relacionados com "Coruche" estarão os topónimos "Corucho", "Coruxeira" (Galiza) e "Corujeira".

em todos estes lugares antigos pontifica um cruzamento, uma encruzilhada ou um entroncamento de caminhos ou de estradas, ainda actuais ou já em desuso.



7 comentários:

josé cunha-oliveira disse...

Muito obrigado. Vou consultar o vosso "saite" www.arqueotavira.com e adicioná-lo aos meus "favoritos"

Anônimo disse...

De facto, na minha terra existe um local, onde não há memória de qualquer cruz ou cruzeiro, que não é mais que o cruzamento para a povoação de "Carril" (nunca por lá existiram comboios), designada pela população como "Cruz Carril" e a que estão associadas várias historietas de histórias de almas do outro mundo, muitas delas contadas e supostamente testemunhadas por pessoas ainda vivas. A superstição mantém-se.

josé cunha-oliveira disse...

"Carril" era uma das palavras para "caminho", antes de o ser para o caminho específico dos combóios ou trens. habitualmente, os lugares chamados "carril" são servidos por uma estrada antiga, para "carros" (daqueles que ainda não tinham motor).por isso, não é de estranhar que nos "Carris" haja ou houvesse "Cruzes".
veja o post "Topónimos Viários"
um abraço

Anônimo disse...

Caro Senhor, a propósito da relação do vocábulo "cruz" com o termo "cruzamento", na Freguesia de Santa Catarina da Serra, Concelho de Leiria, na divisão efectuada a 16 de Janeiro de 1716, dos Termos de Leiria e Ourém, que passava pelo meio da Paróquia, a colocação de marcos principiava na zona do «Homem Morto», junto ao Vale da Mó, na Quinta da Sardinha, próximo à estrada EN113, que liga Ourém a Leiria, com um desvio para a EN357, em direcção a Fátima. Em 1716, antes da existência dessa estrada, construída em finais do século XIX, a estrada real vinha pelas vertentes até à «Cruz do Homem Morto», onde se deixava, então, a estrada de Leiria, a caminho do Pedrome, Loureira (em Santa Catarina da Serra) e, por fim, Cova da Iria (Fátima). Deste modo, nos inícios de Setecentos, de acordo com as fontes disponíveis, "cruz" era um "cruzamento" e não um objecto religioso em forma de cruz.

Com os melhores cumprimentos.

Vasco Jorge Rosa da Silva.
História das Ciências.
Bolseiro da FCT.

josé cunha-oliveira disse...

pois. assim é.
"cruze" e não "cruz".
a "cruz" cristã está lá para lembrar e cristianizar o velho culto das encruzilhadas.
obrigado pela sua achega.

Ricardo Lemos disse...

Sou Natural da Cruz dos Morouços e fiquei surpreendido com este articulo,infelizmenet ha muitas pessoas que nem se interesam pela origem do nome da sua terra;
Muito Obrigado

josé cunha-oliveira disse...

não me custa aceitar que tenha razão, sendo certo que "morouços" é substantivo. porém, na minha atividade profissional conheço muitas pessoas de volta desse lugar que pronunciam "Cruz de Morouços".