a Toponímia constitui uma disciplina fascinante. implica conhecimentos linguísticos muito vastos e uma bem sustentada erudição histórica. em muitos aspetos, assemelha-se à Arqueologia, pela sobreposição de estratos linguísticos que implica. os nomes de Serras e de Rios são bons exemplos de uma estratificação de nomes nas sucessivas línguas que lhes deram a designação. cada Povo lá deixou a sua marca, forma de, como diz a Bíblia, os conhecer e deles tomar posse. além disso, os próprios Povos e Tribos se deixam entrever e identificar pelo nome das terras que ocuparam.
a toponímia parece-se muito com um jogo: palavras, raízes, prefixos ou sufixos aparentemente iguais, significam coisas muito diferentes em função da língua de onde provêm. com o tempo, as palavras toponímicas adquirem semelhanças perturbadoras e mesmo desconcertantes para a língua atualmente em uso, o que leva, por vezes, a rever a designação toponímica de determinada aldeia: é o caso de “Porcalhota” (atual “Amadora”), “São Paio de Farinha Pôdre (actual “São Pedro d' Alva”), “Punhete” (actual “Constância”). ou, então, a construir elaboradas confabulações e histórias mais ou menos bizarras para explicar o topónimo: é o caso de “Freixo-de-Espada-à-Cinta” (melhor, Freixo de Espadacinta) ou de “A-Ver-O-Mar” (melhor, Aver-o-Mar), “Maçãs de Dona Maria” e outros. há o costume de chamar “lendas” a essas confabulações, mas, ao contrário das verdadeiras lendas, não têm qualquer fundo de verdade, nem são desafios ao Saber. o que não quer dizer que não haja verdadeiras lendas, que ajudam a compreender o nome e a história de uma dada povoação.
neste jogo é mais fácil perder do que ganhar e, não raramente, perdemo-nos nele. é um labirinto repleto de indicações confusas, ambíguas, por vezes iguais mas de diferente significado. ainda assim temos alguma ajuda no facto de o nome dos lugares se referirem a aspetos da geografia ou da orografia do lugar, a pormenores arquitetónicos, religiosos ou de outro tipo que favorecem o aparecimento de pistas semânticas. é o caso dos rios, das serras, das planuras, dos pontos de travessia de rios ou de obstáculos naturais. mas “antever” o significado não é o mesmo que identificar a língua que o transmite. não surpreendem os múltiplos significados que os diversos estudiosos dão ao mesmo topónimo e o facto de o significado de um dado topónimo não ser pacífico nem seguro para o mesmo investigador.
um dos obstáculos com que o estudioso se defronta é a excessiva “latinofilia” dos seus antecessores. o latim foi apenas uma das línguas que tiveram influência na toponímia e muitos dos topónimos atribuídos ao latim são meras transposições latiniformes de topónimos muito anteriores à presença romana. além disso, o nome das cidades e dos oppidae que constam dos itinerarii carecem dos mapas que os localizem. esses itinerários apenas indicam as distâncias entre localidades, sem menção do por onde. isso tem dado lugar às mais desencontradas opiniões sobre que nome tinha uma dada localidade durante o domínio romano. algumas dessas localizações feitas pelos eruditos desde o séc. XIX são meras especulações.
estudar toponímia é seguir o Passado da frente para trás, até às suas primeiras manifestações humanas. um só topónimo pode conter estratos de várias línguas, como, por exemplo, “Rio/Guadi/Ana”: “Rio/Rio/Rio”, de acordo com três estratos étnicos que lhe deram o nome. a toponímia é a fiel depositária das antigas formas linguísticas. o caso da toponímia brasileira constitui um excelente laboratório desta disciplina. praticamente, só lá existem topónimos tupi-guaranis e portugueses. ainda assim, alguns topónimos pré-europeus não são tupi-guaranis, o que pressupõe a presença de, pelo menos, uma terceira língua, provavelmente anterior.
por sua vez, a toponímia galega, além das óbvias coincidências com a portuguesa, tem a particularidade de preservar o artigo definido “A” ou “O” nos casos em que o topónimo é um substantivo, seja ele ainda atual na fala comum ou muito arcaico, o que nos permite extrapolar para os topónimos portugueses e descobrir esse “A” ou esse “O” onde ele está oculto, como em “A-marante” (?), “A-furada”, “O-var”, etc., e compreender por que razão certos topónimos portugueses não podem ser tratados como substantivos, masculinos ou femininos: é o caso de “Feijó”, “Lorvão” e muitos outros.
este artigo não pode ser confundido com o “A” indicativo de certos topónimos portugueses como “A-dos-Cunhados”, muito frequentes na região saloia. aqui assim surgem alguns topónimos já simplificados pelo uso e pelo desconhecimento do seu significado original, como em "Dagorda" (já corrigido para "A-da-Gorda") e em "Damaia" (antes chamada "A-da-Maia").
neste estudo optei por alinhar os topónimos portugueses, galegos e brasileiros por ordem alfabética, independentemente da sua atual importância económica, político-administrativa ou populacional, dado que é em topónimos aparentemente sem qualquer expressão desse tipo (os chamados “microtopónimos”) que se encontra a verdadeira antiguidade e as autênticas raízes e, quem sabe, a localização perdida de antigos povoados referenciados nos itinerarii. na verdade, os microtopónimos de hoje podem ter sido, e são, muitas vezes, topónimos fundamentais do passado. aliás, não é nenhuma raridade suceder que o topónimo diminutivo seja hoje maior e mais importante que aquele que lhe deu origem, como é o caso de "Tonda"/"Tondela", "Quintã"/ "Quintanilha". e o mesmo sucede com as "novas" povoações, como "Proença-a-Velha"/"Proença-a-Nova", "Condeixa-a-Velha"/"Condeixa-a-Nova", "Albergaria-a-Velha"/"Albergaria-a-Nova".
assim, nesta recolha, os topónimos aparecerão em pé de igualdade, indiferentes às vicissitudes histórico-demográficas que tornaram uns micro e outros macro-topónimos na atualidade.
além da aturada pesquisa bibliográfica, linguística e histórica que um trabalho deste tipo exige, nele se repercutem as muitas viagens por montes e vales que vou fazendo e a privilegiada circunstância de, sendo eu médico, poder compilar os lugares de nascimento e residência dos meus pacientes e com muitos deles saber ainda muito mais sobre pormenores da sua terra, dos seus arredores e da sua Região.
o estudo da toponímia carece de um método eficaz, o qual, em meu entender, deve incluir um razoável conhecimento linguístico e histórico, um indispensável conhecimento topográfico, orográfico e minucioso dos locais, um senso crítico fora do comum e o recurso permanente à toponímia comparada. o estudo dos topónimos de pequenos lugares ou povoações, por vezes até de ruas, vielas e caminhos, pode dar-nos a chave para a decifração de topónimos que ao longo das alterações históricas adquiriram maior importância demográfica e administrativa. é o caso de topónimos como “Espada”, “Espadanal”, “Freixo de Espada à Cinta”, “Mora”, “Moura”, “Mourão”, “Senra”, “Sernache”, “Sernadas”, “Sernancelhe”, “Chenlo”, “Chelo”, “Chaira”, “Cheira”. o mero conhecimento erudito das línguas clássicas tem induzido em erro muitos estudiosos, os quais tendem a ver latim, grego, árabe, línguas celtas e germânicas onde tais línguas não existem ou não deram o seu contributo para um dado topónimo. infelizmente, a erudição e o academismo têm prestado fracos serviços à toponímia. os disparates produzidos pela investigação toponímica são imensos e tendem a reproduzir-se como todos os disparates. para complicar a situação, as homofonias são tantas de língua para língua que só o bom senso nos pode conduzir na decifração de um topónimo. só quando nos perguntamos “isto é significado que se aceite?” e o bom senso nos diz que “sim” é que teremos encontrado, com alguma probabilidade o significado autêntico do topónimo.
mas a Toponímia merece ser tratada como uma disciplina científica. mereceria, neste caso, ser chamada “Toponimologia”. os nomes de lugares estão longe de ser casuais. obedecem a leis e apresentam padrões e ocorrências regulares. um determinado nome de lugar pode ocorrer em várias línguas com o mesmo significado. é, apenas como exemplo, o caso de “O Redondo” e “Almodôvar”.
4 comentários:
Caro José,
Achei o artigo muito interessante.
Ao ver o mapa de Portugal acho os nomes muito belos, e trazem uma familiaridade que, mesmo sem sabermos o significado original, está presente na alma, não está?
Gostei da constatação de que os eruditos vêem sempre uma origem latina nos vocábulos portugueses, sendo que o português não é apenas um latim com sotaque, mas uma língua distinta.
O que ocorre no Brasil é o rebatismo de locais com nomes antigos, usualmente para homenagear um familiar de algum político e bom, perde-se até no nome do lugar nossa história e memória.
Acho que esse problema é maior aqui do que aí. Mas podemos fundar um movimento!!
Um abraço,
Luis Felippe
lfchammas@hotmail.com
Prezado Cunha-Oliveira,
seu trabalho é muito interessante. Realizo pesquisas toponímicas na UFAC (Universidade Federal do Acre) e gostaria de utilizar seu texto como referencial teórico (inclusive utilizando alguns trechos para fundamentar minhas discussões). É possível que o senhor encaminhe autorização?
Fico muito grato.
Prof. Dr. Alexandre Melo de Sousa.
alexlinguista@gmail.com
alex-uece@uol.com.br
P.S. Eis algumas de minhas publicações:
http://www.filologia.org.br/revista/39/05.htm
o www.entrelinhas.unisinos.br/index.php?e=7&s=9&a=44
Gostei de teu estudo e observações! Foi bem pertinente para oficina que estou preparando sobre História Oral.
caros Luis, Alexandre Melo de Sousa e Sérgio Bucco:
agradeço os vossos comentários, que me dão motivação e alguma felicidade pelo trabalho que vou desenvolvendo. podem utilizar os meus textos com a devida citação do autor. e, claro, gostaria de ter retorno dos vossos trabalhos e publicações.
um abraço.
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